O mundo está em constante mudança mas há momentos em que há um antes e um depois a vincar períodos históricos que devem ser recordados. E antes de serem recordados devem ser estudados porque não há nada mais fácil do que (re)construir a realidade. E a aceitação de ânimo leve de qualquer construção da realidade tem associadas duas coisas que me preocupam: a idolatria e a obediência.
Aos perigos da idolatria e da obediência junta-se a dependência do digital: o nosso dinheiro quase não passa pelas nossas mãos, os livros escolares estão dentro dos computadores e estes nas mesas de estudo dos alunos, os telemóveis estão colados às mãos e resta-nos uma mão, por vezes nenhuma, para fazer as coisas que antes fazíamos. Os lugares e momentos lentos e calmos estão a encolher e são encontrados à lupa. Se os meus avós viessem ao mundo agora e vissem as redes sociais, o trânsito e a ausência de vida flora e fauna achariam que tínhamos vendido a alma.
Se antes não podíamos alimentar a alma, subjugados pela ditadura política que minava a sociedade, que desconsiderava mulheres e crianças e educava homens para odiar e subjugar, hoje cedemo-la, talvez seduzidos por dopamina. Tudo tem de ser rápido e magnético.
Tento rebater o pessimismo. Ainda há pessoas que resistem, naturalmente ou por exercício de consciência, e ainda há momentos calmos e lentos, uma espécie de bolhas analógicas. No mundo ideal todas as criaturas poderiam fazer escolhas, cumprir os seus deveres com civismo e ter acesso ao fundamental: alimentação, habitação, educação, saúde, justiça, paz e livre circulação.
A liberdade é, acima de todos, o bem que mais prezo. Recuso os medos criados por quem finge combatê-los, dando-me em troca protecção que encobre vigilância e controlo. Assusta-me esta censura do passado, da literatura. Assusta-me a inércia, a falta de curiosidade e de questionamento. A procura não pode ser abandonada nem proibida enquanto as boçalidades são aplaudidas e copiadas. O proteccionismo desmedido faz com que os jovens não desenvolvam espírito crítico nem capacidade de argumentação. Ou há alguém que tem medo do espírito crítico?
Passam 49 anos. O 25 de Abril de 1974 existiu, assim como a Guerra Colonial, assim como a PIDE, assim como a prisão do Aljube e o Campo de Concentração do Tarrafal. Não esqueçamos o que passou e resistamos ao que ainda vem. Estou preocupada, embora acredite que só está quem deve estar até quanto tiver de estar, ou seja, está quem tem arcaboiço para virar isto ou viver isto.
Termino este texto com uma sugestão de leitura: O triunfo dos Porcos ou A Quinta dos Animais (Animal Farm) de George Orwell (Eric Arthur Blair, 1903-1950, Índia-Inglaterra). Escrito para satirizar o estalinismo, pode servir de analogia à sociedade humana que caminha para o totalitarismo. Esta sede por mais poder, mais controlo, mais razão, mais propriedade e mais dinheiro é a ruína da sociedade e o alimento de cidadãos corrompidos e malévolos.
Os porcos tornaram-se líderes escusando-se ao trabalho e reclamando a si o direito a organizar e o dever de pensar. Instruíram-se para controlar e deter a verdade e usaram a força para intimidar, tornando-se ditadores. (Re)escreveram a história, desmentiam o que tinha sido ouvido e confundiam memórias porque sabiam ler e escrever. O medo, a idolatria e a obediência permitiram que se tornassem donos do tempo, da vida e da morte. E destes perigos nunca estaremos a salvo. Temos de resistir: saber ler, saber escrever, saber pensar, saber perguntar e conhecer a história.
Na semana passada fui a uma escola e disse a alunos adolescentes da área de Humanidades: ”Os primeiros alvos de uma ditadura são os escritores. E porquê?”
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