Hoje trago um poema que me tem vindo à mente com muita frequência, não só porque o levarei à próxima Roda de Leitura, já no dia 23 deste mês, mas porque o tenho dito como se fosse um mantra.
Creio que poderei vir a saber este poema de cor ou pelo menos vir a saber alguns versos de cor. Não o faço com propósito de o decorar para ter boa nota, acontece-me. Ler em voz alta ajuda-me a descobrir a toada do poema, que logo se molda ao que sinto e ao que interpreto. Não sei se já vos disse mas saber de cor é saber de coração (do latim cor, cordis).
É inevitável para mim saber de cor alguns poemas, o que não significa que sou hábil a memorizar, mas que os poemas são tão bem construídos que é fácil seguir-lhe a tal toada e dizê-los como se fosse uma canção, mesmo sem rimas. O poema não precisa da rima para ser musical e para ter ritmo, precisa de ser bem construído e de ter substância, que é mais do que intertextualidade, é uma profundidade que lhe garante várias camadas de interpretação e uma codificação que impele o leitor a procurar qualquer coisa nele e fora dele. Como se o poema fosse um alimento que não acaba, a cada leitura um novo apetite.
O Poema pouco original do medo
O medo vai ter tudo
pernas
ambulâncias
e o luxo blindado
de alguns automóveis
Vai ter olhos onde ninguém os veja
mãozinhas cautelosas
enredos quase inocentes
ouvidos não só nas paredes
mas também no chão
no tecto
no murmúrio dos esgotos
e talvez até (cautela!)
ouvidos nos teus ouvidos
O medo vai ter tudo
fantasmas na ópera
sessões contínuas de espiritismo
milagres
cortejos
frases corajosas
meninas exemplares
seguras casas de penhor
maliciosas casas de passe
conferências várias
congressos muitos
óptimos empregos
poemas originais
e poemas como este
projectos altamente porcos
heróis
(o medo vai ter heróis!)
costureiras reais e irreais
operários
(assim assim)
escriturários
(muitos)
intelectuais
(o que se sabe)
a tua voz talvez
talvez a minha
com certeza a deles
Vai ter capitais
países
suspeitas como toda a gente
muitíssimos amigos
beijos
namorados esverdeados
amantes silenciosos
ardentes
e angustiados
Ah o medo vai ter tudo
tudo
(Penso no que o medo vai ter
e tenho medo
que é justamente
o que o medo quer)
*
O medo vai ter tudo
quase tudo
e cada um por seu caminho
havemos todos de chegar
quase todos
a ratos
Sim
a ratos
Alexande O’Neill (1924-1986, Portugal)
Poesias Incompletas, Assirio & Alvim, 5º edição, 2007
E para acompanhar um poema de um poeta surrealista, a imagem da pintura de um pintor cubista, ambos herdeiros do simbolismo.
Despeço-me até ao próximo mês. Tenham medo e livrem-se do medo.
imagem: Matanza en Corea, Pablo Picasso (inspirada na pintura de Francisco de Goya: El 2 de mayo de 1808 en Madrid o “La lucha con los mamelucos”. Óleo sobre lienzo. 1814.)
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